Um olhar que ninguém vê

Olá pessoal, tudo bem?
Eu sou a bengala, sou a companheira da maioria das pessoas com deficiência visual, sejam eles cegos ou baixa visão. Resolvi vir aqui para falar um pouco do meu trabalho, e falar do que acontece ou do que não é legal fazer comigo ou com meu dono(a)/piloto(a).
A título de curiosidade, meu nome é bengala. As vezes meus donos me chamam de algo carinhoso, mas não é: varinha, bastão, coisinha, tectec, pauzinho, muleta (as colegas ficam chateadas ao serem confundidas comigo, mesmo porque a função é diferente!), negocinho e por aí vai... Sou apenas bengala...
posso ser inteira, dobrável, de alumínio ou telescópica de carbono. ponteira fixa ou roler, preta, colorida ou ainda verde para a galera baixa visão. Dependendo do piloto(a), ir rápido ou devagar, barulhenta ou sorrateira e silenciosamente. Ir guiando ou só do ladinho acompanhando se já tem um guia humano. Tudo depende da situação, porque mesmo ali acompanhando ao lado, ainda posso ser útil para ver tamanho e quantidade de degraus, distância de uma valeta e alguns obstáculos que a pessoa tenha dificuldade de explicar. É legal ver meu piloto(a) de carona segurando o braço de outra pessoa, algumas vezes rola uns papos bacanas! Mas o único que não tenho ciúmes para guiar meu dono que sei que vai cuidar direitinho é o cão guia, porém de qualquer forma, eu sempre fico a postos caso necessite.
O que não da pra admitir é alguém vir do nada, e me freiar, ou me segurar, ou ainda pior, me tirar da mão do meu dono ou dona! Fico muito braba... Já basta eu estar guiando e as pessoas me pisam, me chutam, me xingam... :(
Quando chegamos no destino, meu piloto(a) me estaciona em algum cantinho de fácil acesso, pode ser esquina de parede, lado de porta ou se sou dobrável emcima de algum lugar.
Só peço uma coisa: Pessoas não usuárias de bengalas, por favor, não me estacionem em outro lugar sem o prévio consentimento do meu protegido(a). Isso com certeza vai deixar o bengalante bem perdido se não me encontrar. Como ele(a) vai ir para outro lugar, Para casa, escola, trabalho, bar, praia, trilha, balada?
O triste é quando ignoram meu piloto(A), que as vezes está precisando de ajuda, meu papel é identificar ele nesses casos também, e tentar ajudar da melhor forma possível, pois por mais que coloquem tecnologia em mim, eu sempre serei uma simples bengala!
Eu não faço milagres, e o mérito de andar por aí com autonomia, é todo do meu piloto(a), eu apenas protejo ele ou ela de algumas coisinhas, guiando, desviando de obstáculos e avisando de perigos eminentes.
Para quem não sabe, sou considerada extenção da mão dele ou dela. Mas, poderia  facilitar o meu trabalho é alguma forma  que pudesse ajudar a avisar meu piloto(a) de orelhões, lixeiras e coisas que estão além do meu alcance.
Fico muito feliz, mesmo que minha responsabilidade dobra, quando meu piloto(a) tem um bebezinho lindo em seu colo, ou uma criança pequena, ou é uma pilota que está esperando um bebê. Aí eu cuido dos dois e fico na maior caltela fazendo o meu melhor.
Por falar em crianças, se tem algo que eu adoro é brincar com crianças, porque sem saber, elas querem saber qual o meu trabalho, então elas fecham os olhos para serem guiadas por mim, as vezes sem nem saber me pilotar. E gosto mais ainda quando os papais delas vem conversar conosco e não passam informação errada, porque, criança é curiosa e quer saber das coisas corretas. Então, mais vale vir falar com meu piloto(a) do que me chamar de qualquer coisa.
Outra situação que me divirto bastante é  quando se reúne várias bengalas e vamos passear de tremzinho por aí, seja em estações de transportes públicos, no shopping ou na rua. Tenho a impressão que muitas pessoas nunca viram uma bengala e quando veem várias juntas se apavoram!
Falar em apavoro. Fico em pânico quando sou daquelas com elástico e no meio do caminho deixo o piloto(a) sem carro, porque desmonto, porque minha corda arrebenta, ou entorto por um pisão de um passante distraído(a) ou obstáculo. mas isso ainda tem concerto! Só colocar uma nova corda ou desentortar o máximo possível e fica tudo resolvido. o problema é quando fico em pedaços e completamente inutilizável no momento ou permanentemente. Por esta razão é bom meu piloto(a) sempre ter um carro reserva.
Por falar em pilotos(as), pode ser de diversas personalidades. Aqueles(as) mais experientes, que me pilotam com mais frequência e agilidade, que conseguem tirar todo mundo do caminho e vão sem medo do que tem pela frente. já há aqueles ou aquelas, que por enúmeras razões, parecem ter medo de bengalar por aí e se apavoram com uma fila de seres humaninhos.
Ah! Sei que deve doer quando tenho que dar de cara com canelas. ainda mais se estão nos pisos guias, ou paradas no caminho conversando. o mais decepcionante é quando xingam meu piloto(a) ou não saem do caminho. Ou ainda andam tão rápido e distraídos(as) no celular que não olham para frente me derrubando ou pior, derrubando meu piloto. Isso quando não saio voando da mão e alguém de boa vontade tem que me buscar.
Ah! As aventuras. Elas fazem parte da vida de qualquer pessoa. E que aventura é ir em um lugar que meu piloto(a) não conhece. Eu fico perdida e não se sabe o que vai ter na próxima bengalada. O ruim é encontrar um buraco onde fico presa, ou areia da praia, lama e materiais do gênero, porque fico suja e preciso ir pra oficina ou ser aposentada.
Também me divirto muito, ainda mais se tenho donos(as) loucos(as) que inventam umas ideias geniais como, brincar de espadinha com outra bengala amiga :).
O que mais adoro, é bengalar por aí e fazer parte das aventuras do meu piloto(a), porque vida de bengala, todo dia é um novo recomeço, novas aventuras e histórias que precisam ser contadas. Afinal, somos milhões trabalhando em cumplicidade com nossos guiados. Somos uma dupla dinâmica cheia de vida, emoções e vivências para compartilhar.
Até a próxima!
Cutucadas, Uma bengala amiga.

Comentários

  1. Respostas
    1. Olá, ficamos muito felizes que você gostou do texto, obrigada!

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  2. Muito legal!Não sou cega, nem baixa visão, mas tenho que descer uma ladeira íngreme e como estou com 56 anos, uso um cabo de vassouras(minha bengala) para descer, tenho a sensação da cegueira, que claro não se compara. As pessoas idosas usam bengalas. Parabéns pelo texto!

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    1. Olá Lúcia, ficamos muito felizes que você gostou e se identificou com o texto, muito obrigada, Em breve mais postagens! :)

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